O meu olhar é nÃtido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás…
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem…
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras…
Podemos resgatar o sentido etimológico de clÃnica, como posição daquele que se inclina perante o outro, mas acrescentamos aqui um inclinar-se para olhar com “um olhar mais nÃtido”, tanto para o mundo objetivo dos entes e das coisas, quanto um olhar com um “pasmo essencial” do homem diante do Ser. Reconhecemos estas possibilidades duplas no olhar, o atento e o desatento, o que se inclina e o que desvia o olhar, o que busca a objetividade do olhar que faz do outro sempre objeto e o da abertura essencial para o reencontro e desvelamento do Ser.
Acrescento a essa noção que se inclina sobre si mesma e sobre o outro uma dimensão emergencial. Chamaremos uma clÃnica da emergência, numa dupla acepção da palavra. Emergência enquanto urgência e emergência como ato ou efeito de emergir e, no caso, dar emergência ao ser.
Como observador com a lucidez poética em busca de “reparar que nascemos deveras” podemos dar nascimento ou facilitar a emergência de novos sentidos em todo lugar. Esta clÃnica de resgate do “pasmo essencial”, do encontro com a verdade desvelada ou aleitéia, segundo Heidegger, pode nos ensinar e sustentar um olhar mais generoso da dimensão clÃnica enquanto espaço facilitador da emergência do ser, ou melhor dizendo, emergência para o ser. Pouco importa a preposição com a qual nos aproximamos do essencial, pois de todas as posições é possÃvel vislumbrar o ser-ai. Podemos mirar, “olhando para esquerda ou para a direitaâ€, pouco importa, o Dasein não pergunta pelo Ser, mas é a própria pergunta pelo Ser para qual nós somos a resposta.
Encontramos o ser onde nosso olhar se encontra com o mundo. Um olhar “nÃtido como um girassol†que segue o sol no caminho pelo céu da existência, dos nascimentos, à s mortes. Heidegger percebeu que há uma clareira, uma radiância própria da experiência do ser, uma nitidez como preferiu o poeta.
Mas como compreender isso? Talvez a via da intuição imeditata seja o caminho oferecido pela abordagem fenomenológica. Os caminhos do poeta e dos seus versos nos apontam também no mesmo sentido que ainda precisamos percorrer com nosso olhar, este olhar em busca do ser, podemos chamar de um olhar verdadeiramente clÃnico. Não por que traga consigo a verdade, mas porque não traz uma resposta, mas segue a pergunta no caminho de desvelamento dos sentidos. Essa aletheia, esse desvelamento do mundo, nos remove da letargia e nos coloca de pé perante as coisas como um “pastor do ser†como indica a imagem heideggeriana. Por isso, Ser, em Heidegger, é realidade que se identifica com o mistério. O Ser está a todo momento em estado de velar e des-velar. O Ser é justamente aquilo que se velando se des-vela, e se des-velando se vela, eis a clÃnica.
Estamos então, perante um mundo em contÃnua emergência. E contÃnua ameaça de obscurecimento, de esquecimento do ser, de alienação de si mesmo. Somos lançados a uma outra urgência nos acontecimentos atuais, seja uma ameaça ecológica e guerras, seja uma insustentável perda de sentido e angústia, explodindo em violência. E que pode a clÃnica perante estes envios históricos? Decorre uma ética desta visão clÃnica?
Em última análise, produzimos com a técnociência, e a neurose de progresso nossa principal ameaça. Somos nós, a forma de todo o pânico. Não apenas como psicólogos somos convocados por essa emergência, mas somos todos em essência convocados por nós mesmos. Por saber que como o ser do homem não se mostra na materialidade dos laudos médicos, ou nas imagens dos telejornais, então resta aos psicólogos deixar espaço para a escuta amplificada de abertura do homem no seu próprio Ser no horizonte e no tempo da clÃnica.
Falamos de emergência do mundo não como representações, das imagens de dor e sofrimento em toda parte, mas antes da “presentação†do fenômeno que testemunhamos, este é o sentido da verdade na clÃnica, não se trata de rememorarmos dados, mas de estar atento a quem nos bate a porta.
Apesar dos fenômenos atuais, fontes de terror e pânico, também quem nos bate à porta e podemos trazer à luz é uma outra questão ainda mais grave e emergencial, a da repressão e encobrimento da essência do homem.
Ser em Heidegger é realidade que se identifica com o mistério. O Ser não é conceitual, é necessário ter sensibilidade para perceber a clareira na qual ele se dá, a ausência das trevas no qual ele se mostra e se traduz pelo ente. O ente é o modo no qual o Ser se revela. E o ente primordial é o homem (Da-sein).
O homem, ente por excelência cujo ser é o cuidado. Ao falarmos de essência com Heidegger denotamos o modo histórico em que um ente revela a si mesmo ontologicamente e é entendido como Dasein. Assim, essência deve ser entendida em termos de ex-sistência do Dasain, ou seja, do ser como abertura de sentidos. Essa dimensão essencial, que é reprimida pela educação tecno-cientÃfica, que a clÃnica permite fazer emergir, dar espaço e deixar ser.
Podemos considerar que há assim uma emergência da clÃnica, como um modo diferente da técnica de se aproximar do essencial do homem. Como um caminho-sentido, abre-se, através da posição existencial que a fenomenologia nos oferece, uma possibilidade de falar do Ser enquanto tal, afastando-se da metafÃsica. Permitido um amplificação de sentidos, clareando a visão do que seja homem na experiência do devir.
Perdemos nossas raÃzes e somos levados no ritmo acelerado a viver uma existência sem um sentido. Victor Frank, um grande terapeuta do sentido nos alertava e dizia que toda experiência vale a pena ser sentida deste que tenha um sentido. E exatamente nesta busca de sentido que encontramos o homem e também onde nos encontramos na clÃnica.
Já no campo majoritário dos analistas, encontramos a afirmação de que o essencial ao homem deriva da natureza e das pulsões, este fechamento de sentido, esta objetivação, pelo qual estamos fadados devido a uma infância e suas tragédias gregas. Daà resta-nos poucos caminhos senão os já definidos pela profética tragédia do Édipo. É preciso lembrar que esta perspectiva estreita é muito pouco.
Outra adulteração do ser, na mesma direção, que nos afasta do mais próprio em nós mesmo, é a deformação gerada pela informação, da técno-ciência. Ela é capaz de nos possuir, reduzindo-nos à condição de objetos, apresentando uma visão parcial e mÃope.
A ciência é como alguém que persegue a realidade em certas condições experimentais testando a validade das hipóteses que correspondem à suas próprias previsões. Ora, veja que restam poucas possibilidades fora das previsões feitas. Espreme-se a realidade em um canto e se surpreende que dali só possa sair aquilo que estava previsto.
Com isso, não se trata de dizer que a ciência e a técnica sejam ruins, mas lembrar que elas investigam uma parte da realidade e podem em suas perspectivas destorcidas e distantes do olhares do homem nos falar do microuniverso dos quarks e de macrouniverso dos buracos negros, retirando do homem essa posição de mediador de mundos de sacerdote da criação como dizia Meister Eckard ou de pastor do ser como chamou Heidegger. Perdendo a conexão, o enraizamento com sua posição e suas medidas perante o mundo.
Em poucas palavras, podemos dizer que não somos como são as cadeiras que são objetos para a ciência. Mas que mesmo a cadeira, que reune vários predicados, há algo que permanece, há na cadeira um ente, que perdura no tempo, que simplesmente é. É essa intuição ontológica comum a nós que escapa na ciência, pois não se faz objeto no ser do homem. O ser é tão insustentável, é tamanha a insustentável leveza do ser que ao falar dela já estamos “entificandoâ€. Acudo-me do poeta novamente em busca de uma intuição:
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo…
Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender…
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo…
Eu não tenho filosofia; tenho sentidos…
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar…
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar…
Temos então, diante do nosso olhar e para além do pensamento analÃtico, uma dupla mensagem emergencial que tentaremos superar: de um lado vivemos uma emergência no angustiante momento que atravessamos que nos convoca a uma resposta para estar no mundo de uma forma inclusiva, engajada e comprometida com a realidade. Mas junto desta, resiste uma outra emergência, a emergência do ser na clÃnica do ser no mundo, que “está no mundo, mas não é do mundoâ€.
Acolhimento de todas essas possibilidades se traduz em plenitude, em participação, em comunhão, em verdade. Não se trata de perguntar ser ou não ser, mas de ser a reposta desvelada para toda pergunta. Não se trata de dizer a verdade, mas de encarnar esse desvelamento, esta verdade. Eis mais uma noção importante para a clÃnica.
Mas como abordar a questão do ser, que quando falamos nos afastamos dela, pois não se trata de um conceito, mas antes de uma percepção imediata, uma intuição, não é uma meta a se atingir, ou um modelo ideal a ser alcançado. Podemos, contudo, nos colocar fenomenologicamente a “crer no mundo, não por que o vemos, mas olharmos e estamos de acordo†nas palavras do poeta. Como num mal-me-quer podemos dizer sim e não e deixar estar em serenidade repousando a realidade no lugar onde estamos.
Além disso, podemos superar esse aparente paradoxo e ir além do jogo entre um mal-me-quer e um bem-me-quer. Esse antagonismo, essa ilusão da separatividade, essa falsa escolha que cria oposição entre eu e tu.
A fenomenologia de Hurssel interpretada por Heidegger fez possÃvel pensarmos sobre nossa ontologia, rompendo com a metafÃsica. Por isso quando falamos de ser, podemos intuir essa resposta. Perceber que diante de nós está o mundo e ele nasce a cada momento perante nossos olhos. O poeta nos fala de ter um coração capaz de acolher todos os sentidos, os paradoxos e as aparentes contradições, no mesmo lugar onde se encontram o eu, o tu e o mundo. A isso Heidegger chamou serenidade, o que Meister Eckerd reconheceu como a maior das virtudes.
Considerando o que expusemos, falemos ainda de clÃnica. É o “pânico†em suas variantes classificações que nos demandam nos consultórios e nos hospitais. Mas o que podemos escutar à luz da perspectiva fenomenológico-existencial em relação a essa emergência. Primeiramente, podemos ver melhor se antes nos despirmos da técnica. Pouco nos ajuda os rótulos e as categorias patológicas no encontro clÃnico, ao contrário, pode nos fazer desviar o olhar sob a lente nem sempre adequada ao paciente que chega.
Embora já tenhamos falado que não é o instrumento ou a técnica que é, em si, boa ou má, mas sabemos que mesmo um instrumento justo nas mãos injustas, traz consequências não justas. Por isso a necessidade de preservarmos o referencial do Ser e da abertura de sentidos sempre como ponto de partida e de chegada da atitude fenomenológica-clÃnica. Condição de possibilidade clÃnica que está além do terapeuta e do paciente e acontecem apesar da boa ou da má técnica.
Para todos os interessados em terapias, em cuidar, é importante considerar as possibilidades emergenciais da clÃnica que aponta sempre para o algo mais, para além das explicações psicanalÃticas ou modelos comportamentais pré-definidos desta ou daquela escola.
Podemos nos perguntar se haverá outros sentidos, no universo de sentidos humanos. Perguntamos se há para você e para mim, uma possibilidade de abertura e ampliação de sentidos?
Nunca tivemos tantas técnicas de viver, nos afastando do percurso de descobertas de nosso próprio sentido. Nunca tivemos tantas pesquisas e tantos saberes e talvez nunca tenhamos vivido mais alijados de nós mesmos.
Será possÃvel abordarmos essa dupla condição emergencial da clÃnica de maneira nova? Não se trata de utilizar novas palavras, ou criar uma nova corrente de pensamento. Mas de dar ao pensamento uma fonte de renovação e autenticidade que lhe permita renovar os sentidos das palavras e colocar em suspensão e atenção, desidentificando-se do mundo para assim se aproximar ainda mais da verdade. Como observar a nudez do mundo como se o vÃssemos a cada momento como diz o poeta? Confio que tanto o poeta, como o filósofo nos falam de um conhecimento imediato, para além da razão, para além das representações. Portanto, prosseguimos com a poesia:
Podemos ficar anos fazendo esta ou aquela terapia, sentados ou não num divã e conseguirmos muitos e muitos pensamentos, alguns até bem sofisticados, a grande maioria apenas repetições. Mas podemos ficar até muito orgulhosos de todas as explicações que temos das causas de todas as coisas. É o que nos promete a ciência, conhecer as causas das coisas como se todas as descobertas já tivessem sido feitas. Quantos profetizaram o fim da história e o fim de todas as grandes descobertas, e quantos ainda encontrarão sentido em afirmar que a maior redescoberta do século XXI será o ser humano. Não o genoma, mas o ser do homem, descoberta da presença do Ser. O essencial do homem não se encontra em um laboratório, mais do que no seu labor e oratório.
Aprendi com a psicanálise que a análise, como o próprio do método analÃtico se define, pode ser capaz de gerar boas explicações. Mas não pode nos ensinar compaixão, ou a serenidade heideggeriana. Podemos dizer o mesmo sobre viver, sobre morrer, sobre a condição essencial do homem, podemos reconhecer que não sabemos. No sentido etimológico a palavra saber vem de saborear. Talvez ainda não tenhamos saboreado suficientemente nossa humanidade para descobrir que somos habitados pelo ser.
Na sua Introdução à metafÃsica Martim Heidegger nos ensina sobre o saber: saber, porém, significa: poder manter-se na verdade. Essa é a manifestação do ente. O saber é por conseguinte: poder estar na manifestação do ente, suportá-la. Possuir simples conhecimentos, por mais amplos que sejam, não é saber. Mesmo se tratando de conhecimentos “ligado à vidaâ€.
Pascal, um homem do pensamento lógico e analÃtico, teve essa mesma intuição sintética, ele dizia em um trecho muito conhecido que “o amor tem razões que a razão desconhece”, mas também dizia, em outro trecho menos conhecido, “o amor está além da razão, mas não está contra”. Aqui, quero trazer e afirmar este segundo, pois não se trata de fazer uma oposição à epistemologia, à racionalidade ou a qualquer técnica analÃtica. Tratamos sim de compreender o pensamento como representação do mundo, mas ir além dele na condição de inocência, entendida como um não-conhecer. Não conhecer que é a própria condição para que possamos vir a conhecer sem projetar, sem identificar e como diz a poesia, sem pensar. A fenomenologia nos fala da epoché, da suspensão do juÃzo, que podemos compreender como uma posição ética perante o outro na clÃnica.
Diferentemente das impressões que nos deixam as palavras nas epistemologias, nas descrições dos experimentos cientÃficos, nas terorias das ciências naturais, essa intuição compartilhada pelo poeta-filósofo e pelo filósofo-poeta, permite uma abertura para o mundo em sua multiplicidade.
Existimos num tempo em que nos parecem mais naturais os dados das ciências que nossa própria experiência de mundo. Somos expatriados de nós mesmos, estrangeiros em nossa própria terra.
Essas formas analÃticas mediadas por palavras e fórmulas e modelos da técno-ciência nos oferecem as partes de um mundo que não se completam no quebra-cabeça, acabamos como objetos de uma taxonomia infinita, gerando especialistas, que sabem, cada vez mais, quase tudo sobre quase nada.
Imagine que você vê uma árvore e diz que conhece a floresta, como se fosse possÃvel descrever a sensação de andar de carro estudando as partes de sua mecânica. Há muito mais em conhecer do que nos oferece a ciência e é uma mensagem importante no pensamento de Heidegger.
É preciso relembrar-nos, sob risco de um fascÃnio hipnótico que as técnicas exercem sobre nós, que há mais no mundo, mais entre o céu e a terra do que sonha a ciência. Mesmo porque, ciência, como objeto, cientificamente falando, não sonha.
Assim, seres de sonhos, colocados entre o céu e a terra, podemos nos colocar de pé e nos fazer humanos capazes de aletheia, dessa verdade. Pois encarnamos um projeto finito, de infinitas possibilidades. Assim vamos retomar os sonhos e sentidos do mundo como próprios do homem e não buscá-los fora de nós. As técnicas não têm as respostas, pois não se trata de ter respostas, mas de ser a resposta.
Mas seguimos reduzindo o mundo à condição de um objeto, e estamos, nesta visão, incluÃdos nessa classificação: homo Sapiens Sapiens. Porém, há, um outro sapiens, uma outra forma de “saber†no mundo, essa que intuimos ao nascermos, pois o mundo nasce no instante mesmo que nascemos para o o mundo e o mundo nasce para nós. Antes de ser povoados pelos entes que conhecemos, antes de dar nomes ao mundo, já havia o mundo onde todo encontro é possÃvel, o palco do teatro da existência.
Este mundo em emergência, cujo sentido emergencial está presente no texto heidegeriano quando resgata o sentido grego physis, que significa esse “surgir emergente, que brota. O desabrochar e desprender-se que em si mesmo permanece. A partir de uma unidade originária se incluem e manifestam neste vigor repouso e movimento. É a presença predominante, ainda não dominada pelo pensamento.†In introdução à metafÃsica.
Voltamos a indagar se não será esse o sentido da clÃnica, o sentido mesmo do estarmos no mundo? O de conhecer e dar nascimento, fazer uma maiêutica do sentido do homem e um simultâneo parto do mundo e para o mundo. Que situação é essa onde podemos encontrar o Ser do homem? Que precisamos para fazer este casamento fecundo e deixar emergir o Ser como filho legÃtimo entre tu e o mundo que a tudo acolhe e concebe?
Podemos responder dizendo que há muitos lugares para a clÃnica , pois o ser está em todo lugar, tudo afinal, é palco de encontros e desencontros, o mundo enquanto physis brota, surge, emerge em todos os cantos.
Mas precisamos distinguir entre os entes e o ser do homem, pois há no homem uma condição existencial que é de dar nascimento à s coisas do mundo. Homem, assim sendo, não é coisa, pois não segue sendo como as coisas que restam, mas se coloca perante o ser como um pastor que tem no cuidado sua atitude mais própria. Assim sendo, a clÃnica como uma inclinação para o cuidar do ser é a atitude mais radicalmente humana.
Assim, não existe um lugar ou um tempo em que possamos encontrar com certeza, uma técnica ou treinamento certo que possa nos dar o fórceps desta emergência do ser. Porém, este acontecimento, esse “lugar-instante-sendo” de emergência, recebeu muitos nomes, mas neste contexto o chamaremos de simplesmente clÃnica.
Para entendermos algumas diferenças fundamentais no que tange essa noção que queremos traduzir, faço mais um convite a reexaminar com outras palavras nossa realidade vivida, que é a mais global e a mais concreta que todas as palavras. Compreendemos o homem em sua concretude, não se trata de dar nomes ou inventar outros lugares se não o mundo para os fenômenos que se dão. Nem se trata de ser iniciado em conceitos desta ou daquela escola filosófica.
Não falamos de inconsciente, de ego, de self, ou do sistema lÃmbico. Pois quanto mais nomes damos à s coisas do mundo, mais nos afastamos dessa intuição. Trata-se então, de investigar com as bases da fenomenologia aquilo que cada qual descobre na existência. Cada um tem um segredo, conhece o gosto próprio das coisas, e ninguém em nosso lugar pode nos transmitir sua qualidade. O paradoxo em relação à s palavras ao falarmos de Ser, é que quanto mais definições de dicionários, menos conseguimos com que elas descortinem as correntes de vida que nos habitam ou visitam na vida.
Os versos dos poetas seguem nos apontando um sentido…
Passa uma borboleta por diante de mim
E pela primeira vez no Universo eu reparo
Que as borboletas não têm cor nem movimento,
Assim como as flores não têm perfume nem cor.
A cor é que tem cor nas asas da borboleta,
No movimento da borboleta o movimento é que se move,
O perfume é que tem perfume no perfume da flor.
A borboleta é apenas borboleta
E a flor é apenas flor.
Com Heidegger, o que chamamos pensar é estar diante do mundo e o mundo diante de nós e não guardamos do mundo representações mais do que o mundo guardaria de nós. Quando vemos a árvore, ou a borboleta, dizem os filósofo e o poeta, estamos fora do domÃnio da ciência e até mesmo da filosofia. Este salto para fora. Este salto que damos para o chão onde mesmo vivemos e morremos. Por mais estranho que possa parecer, precisarmos saltar de volta para onde estamos, deixando tudo para trás.
Que pode a ciência ou a psicanálise nos oferecer se o que nos oferece a flor e borboleta é aquilo que ela é. Nada de essencial resta nas explicações e análises, ao mundo e à nossa experiência de ser-no-mundo, as explicações acrescentam muito pouco. Ao contrário, podem acabar se convertendo em viseira que fazem tal como os animais obrigados a olhar em uma única direção e estreitando a experiência de mundo.
As viseiras muitas vezes são como os microscópios e telescópios que nos dão visões tão estreitas e tão amplas, que nos perdemos de vista. Não podemos ver o homem através dessas lentes. Embora cada qual tenha sua medida, podemos imaginar que talvez seja isso, essa enorme desmedida no olhar, que aos gregos chamavam de hybris, e lhes parecia o pior de males, a desmesura.
As conseqüências ecológicas para essa perda de visão, essa perda de perspectiva são emergenciais, mas seguimos com nossas viseiras, cegos ou no mÃnimo alienados da vida no planeta, do calor excessivo, das chuvas tóxicas, dos desequilÃbrios da vida na terra onde estamos. Aprendemos a ver mais o que se passa em um paÃs distante do que somos capazes de ver abrindo as janelas de casa. Será problema da televisão, da janela ou do nosso olhar?
Veja que se não podemos acudir a essa emergência planetária, eis o tamanho da nossa alienação com relação à vida, com o outro, com o mundo e como já dissemos, consequentemente, conosco.
Como vamos enxergar a nós mesmos se tudo que precisamos fazer para saber do mundo e de nós é buscar um especialista que nos diz o que saber. Assim, caminhamos com olhares estreitos sem ver a emergência ao nosso redor. Por isso há uma emergência para uma clÃnica que possa escutar essas contradições conspirar para uma ampliação de sentidos.
Toda a ciência psicológica ou filosofia que se converteu em epistemologia se afastando da questão ontológica colabora para nosso esquecimento de si. Tão fundamental aos filósofos originais do ocidente ou do oriente era falar do Ser, mas logo a ontologia se converteu em metafÃsica afastando a reflexão filosófica sendo a questão originária de porque “há simplesmente o ente e não antes o nadaâ€, considerada uma impossibilidade epistemológica.
Tanto em Heráclito como em Lao Tse, encontramos essa busca original de falar do essencial do homem no mundo. A fenomenologia e Heidegger nos convidam a retomar essa que é a questão de todas as questões.
Podemos então, falar de três possibilidades do olhar. Olhar o mundo apenas através de um único vetor, do observador para o objeto, é uma primeira maneira clÃnica e talvez a hegemônica. Através de uma segunda via, podemos também perceber que o sujeito e objeto não se separam, mas se interrelacionam, que dão nascimento mútuo, não são objetos, mas seres em relação, que a borboleta que passa também nos dá nascimento. Enfim a terceira possibilidade, e talvez a mais generosa, muito conhecida das tradições sapienciais e contemplativas está presente também nas filosofias de Heidegger. Esta se dá quando há um sujeito sem objeto, a dimensão noética, contemplativa e reflexiva do Ser. Heidegger nos fala de Gelassenheit, a serenidade.
A distinção de olhares está presente na metáfora do dedo que aponta a lua. O observador pode olhar o dedo e esquecer a lua, ou olhar para a lua atento ao que aponta o dedo pode mesmo, perceber além da lua, a luz da lua, não é a luz da lua, senão reflexo da luz do sol. Assim o poeta no fala da serenidade do lago, capaz de refletir a lua, assim como o pensamento em é capaz de reletir o Ser.
Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mÃnimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.
Essas três maneiras de olhar podem ser cultivadas e na maioria das vezes vivenciamos um pouco de cada uma. E também recebemos sobre nós estes olhares na experiência da clÃnica, podemos buscar um terapeuta que imediatamente nos dá um nome, um tÃtulo, um número e sofremos ao ser reduzidos à condição de objeto. Podemos experimentar um encontro com um outro ser humano e isso nos fortalecer e talvez nos console, mas podemos também ser vistos por um completamente outro no olhar do outro, uma presença e uma abertura que nos lembra de nossa condição essencial. Podemos chamar isso de ética da benção, de não reduzir o Ser, mas de preservar e sustentar a abertura ao mistério.
Abrirmos-nos para o encontro de sentidos do homem, na sua dimensão cósmica de integralidade. Não há entre eu e tu ou terceiro no mundo, um excluÃdo, há entre eu-tu-mundo tudo o que há.
Não basta abrir a janela
Para ver os campos e o rio.
Não é bastante não ser cego
Para ver as árvores e as flores.
É preciso também não ter filosofia nenhuma.
Com filosofia não há árvores: há idéias apenas.
Há só cada um de nós, como uma cave.
Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora;
E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse,
Que nunca é o que se vê quando se abre a janela
Na perspectiva ontológica, a integralidade, a unidade na diversidade, de tal modo parecem estranhos ao pensamento moderno, ao dualismo cartesiano que talvez seja preciso muito silêncio antes de encontrar uma palavra justa. Não se trata de afirmar o fundamento da existência no pensamento, mas além do pensamento e das dualidades, encontramos, sem cogitação, o Ser.
No horizonte da meditação heideggeriana sobre a questão do Ser, o universo do qual é posta esta questão é o da existência. Então, não podemos nos colocar uma questão como se estivéssemos fora dessa perspetiva existencial. Não somos um objeto distante de nós mesmos que possamos nos conhecer fora da existência.
Na antropologia materialista e na filosofia convertida em epistemologia excluiu-se e reprimiu-se o ser como se tratasse de uma questão metafÃsica, colocando o homem na posição central do pensamento. O homem como existência, como apresentado pelo pensamento heideggeriano, ao contrário, trata de indagar-se e resgatar o estudo ontológico sem converter-se em uma metafÃsica ou em um humanismo.
O essencial do homem escapa então do campo de estudos dessas técnicas cientÃficas e epistemológicas, embora elas tenham sua função, e podem ser instrumentos valiosos na clÃnica. Mas, se nos limitarmos e ficarmos presos a elas, podemos passar toda a existência como aquele que perdeu a chave de casa e alguém lhe disse para procurar sob um poste na rua. “O sujeito foi e ficou sob o holofote de luz, procurando até que um outro passou e lhe perguntou se ele tinha perdido a chave ali, na rua. O sujeito que procurava atormentado respondeu: “- Não, perdi a chave lá em casa, mas aqui está mais claro.” Assim ficamos.
Sem perder a lição do homem que Heráclito viu mergulhar no rio, de onde, ao sair, não havia mais o mesmo homem que entrou, e já não há ou nunca houve um rio. Ambos estão de passagem. Assim também, certa vez, o terapeuta se viu espantado com a pergunta de que se já tinha visto um rio. Eu hoje afirma o terapeuta que nunca vi um rio. O que viu sempre foram partes de rios, pois ver o rio é ver o rio do lugar de seu nascimento até o ponto em que deságua num outro rio ou no mar. Assim, vemos apenas parcialmente os pacientes que chegam e testemunham essa passagem, confiante que há um oceano para onde correm todos os rios da vida. O que vemos num encontro clÃnico é também um rio que podemos desatentos tentar segurar. Não tente segurar o rio, ele corre sozinho, rios são sempre vir-a-ser, sempre rios que correm.
O que foi nos dado e confiado na condição de ser do homem no mundo é a possiblidade de cuidar, de guardar e de pastorear o ser e o mundo. Mas que pensamento é esse que encontra o filósofo, o artista e o poeta e que escapa à tecno-ciência? O pensamento da clÃnica para emergência do ser pressupõe um olhar desinteressadamente atendo. Uma escuta da fala do rio sem esquecer da condição oceânica para onde todos os sentidos convergem e se abrem. Somos esses oceanos de sentidos e de relações, e podemos testemunhar estes rios que passam, como os passantes que nós encontramos na clÃnica. Eles nunca são os mesmos, mas nascem da possibilidade de seguir todas as possibilidades até o oceano.
Somos, enfim, nós mesmos seres no mundo, Dasein. Uma travessia de fluidos para o lugar do homem, que em si, somos nós mesmos na totalidade das possibilidades de que fala Heidegger. Sendo assim, a clÃnica não apenas pode ser uma atitude aberta a essa possibildiade, mas encontra aà mesmo, no próprio aberto, a condição de possibilidade da clÃnica.
Na clÃnica, o homem como abertura de sentido necessita de uma escuta generosa capaz de acolher esses novos sentidos ou um olhar que se prolongue em direção ao aberto. Assim, nitidamente, podemos afirmar que mesmo quando mediada pela técnica e mesmo apesar da técnica, sempre haverá emergência de novos sentidos decorrente dessa condição ontológica na clÃnica.
Essa condição essencial do ser humano se mantém, sustenta e permanece em abertura. Porém, mesmo se tratando da condição de possibilidade da clÃnica há também uma anti-clÃnica. Aquela que promove o desencontro, que reprime e reduz as possibilidades. Reprime o ser em função da hipertrofia da vontade. A vontade de poder do homem moderno, do tecno-homem,do homem máquina. Essa hipertrofia da vontade, esse obscurecimento ôntico, acaba subordinando outros seres e escravizando-os aos seus próprios fins. Ao invés de deixar o homem ser, de facilitar que redescubra sua condição ontológica e sua liberdade, acabam por aprisionar e em última análise, geram seres despotencializados do espÃrito sem vida.
Por fim, podemos dizer que a clÃnica da emergência do ser é uma clÃnica da sÃntese e não das explicações analÃticas, uma clÃnica da intuição, mais do que da razão, da compreensão contemplativa que testemunha os acontecimentos, do que do voluntarismo traduzidos em ações para remediar.
O ser que oferece ao sujeito uma nova orientação e verdade, verdade como desvelamento, verdade como despertar, verdade como sair da letargia e se colocar de pé com um sentido, com um caminho onde ela mesma se apresenta no próprio caminhar. Esse é o caminho, que os orientais reconheciam como fundamento da vida, o caminho com um sentido.
Assim, nos chega em emergência o homem que se perdeu do seu sentido, do seu caminho, do seu desejo, ou de sua verdade, de sua autenticidade ou de sua sacralidade. Nascido cedo demais para o ser e tarde demais para os deuses.
A clÃnica pode ser o palco desse reencontro, percorrendo a floresta em busca da clareira de sentidos e clareza no pensamento, ajudando a investigar, a caminhar para a abertura, com espaço da criação presente a todo o momento.
A clÃnica do cuidar do ser, do reencantamento do mundo, das palavras e ações do homem. Eis porque falamos de uma emergência, de um lado, nos falta tempo na urgência dos acontecimentos, do outro nos falta Ser, na angústia e falta de sentidos. Mas é desse sujeito mesmo que podemos na travessia da clÃnica, nessa maiêutica de nós mesmos. Dar acolhimento, escuta e espaço para a re-descoberta do ser: o ser perdido na floresta do esquecimento.
Mário Fialho – psicólogo
Texto apresentado no Conpsi – Congresso Norte-Nordeste de Psicologia