A intenção desse texto é tentar elucidar tantas aparentes contradições naturalmente decorrentes de visões parciais e pouco acolhedoras de uma dimensão mais ampla das possibilidades do conhecimento da acupuntura.
Aqui indico uma visão integral, que tenta tomar e conciliar os paradoxos e os vazios entre as teias discursivas, as redes de sentidos e as produções cientÃficas, esta última, pela sua própria natureza, incompleta.
Para tanto, acolher diferentes visões em uma cartografia que nos prepare a um discurso novo, pois, a minha primeira proposição é que estamos em transição. A acupuntura que conhecemos hoje, hegemonicamente MTC, sintetizada no rastro da revolução chinesa e hoje expandida no rastro do capitalismo de Estado que se pretende e se torna realmente centro do mundo. (Zhong Guo)
A acupuntura, entretanto não chegou a modernidade. Não há comprovação cientÃfica que sustente uma publicação cientÃfica relevante (1), enquanto isso o campo da fitoterapia, este sim, cresce em nÃveis industriais que acompanham o crescimento da gigante economia. E é preciso entender que embora esses produtos de exportação cultural tenham sido associados numa venda casada, eles não foram sempre assim.
As terapias orientais encontram tantos ramos, raÃzes e frutos que jamais conseguirÃamos dar conta de aprender tudo. A arte é muito mais vasta do que alcança a nossa vã filosofia, porque na China não temos filósofos, temos sábios. E a diferença entre filosofia e sabedoria é radical, tão radical quanto o oceano que divide o campo das pesquisas cientÃficas da prática clÃnica e sua base fenomenológica de saber aparente e manifesto.
Para entender melhor o tamanho do que nos separa basta se perguntar, se você é acupunturista pela fonte da sua prática clÃnica:
Qual a fonte desse seu saber? Ele vem da ciência? Existe 1% do que você pratica que tenha vindo de um conhecimento produzido cientificamente?
Se for sincero e leva a sua prática a sério, no sentido de trazer resultados, ou seja, conforto e alÃvio em todos os nÃveis para seus pacientes você não se baseia em ciência (2) para fazer seus tratamentos. Você pode se basear em autores como Deadman que relaciona centenas de tratamentos clássicos, do Macioccia (que pouco funciona) porque se baseia em uma leitura da MTC orientada para fitoterapia, ou pode utilizar recursos baseados nos ensinamentos dos “laoshiâ€, dos anciãos, dos mestres mais velhos. E essa tradição, ou essa forma tradicional de produzir saber que nasce do encontro clÃnico que corresponde 99,99% do que sabemos sobre acupuntura, nasce da experiência no atendimento de milhares de pacientes ao longo dos milênios, e isso chamamos de tradição.
Os que têm muitas dúvidas são os que precisam ter muitas certezas e as evidências fenomenológicas vastas não bastarão, vão gritar aos quatro ventos: Acupuntura é cientÃfica! Estão como todos os que gritam errados. Acupuntura que você vai praticar pelas próximas décadas se você tiver sorte, terá aprendido de um mestre. Que aprendeu de outro mestre. Existem hoje livros escritos no rastro das sÃnteses de mestres. Temos Padilla na Espanha, temos Kiiko Matsumoto, temos os registros de Tung, Nagano, Worseley e tantos outros que fazem novas sÃnteses vivas, mesmo no Brasil temos o trabalho original da acupuntura integral. Todos centrados na prática clÃnica, na experiência viva da escuta da vitalidade (qi).
Acupuntura busca escutar a vitalidade, não tratar doenças (embora possa ser também encarada dessa forma), mas, ela está em ressonância com outras terapêuticas vitalistas, no sentido de promover a saúde ao promover a vitalidade (qi).
O campo da acupuntura não é idêntico ao da MTC (medicina tradicional chinesa) que se refere a sÃntese materialista recente. A acupuntura que cada vez mais ganha terreno próprio nas chamadas terapias de meridianos que quanto mais praticamos sabemos que guarda tantas correspondências holográficas. Seja nas mãos, nos pés, na orelha, no abdome, na face, encontramos correspondências, encontramos ressonâncias que atuam sobre o todo.
Por isso, me assombra ver a forma aguerrida como os que se proclamam profissionais da saúde, que são em geral, não por sua falta, mas consequência do modelo que estamos vivendo, profissionais da doença. Pois sabemos a saúde não dá dinheiro, não dá lucro, não movimenta a pesquisa. O que dá lucro é a doença, esse é o “negócio†dos “profissionais da saúdeâ€.
Por isso fico feliz quando uma orientação maior das Nações Unidas declara a acupuntura e sua intuição original do sistema de meridianos de um patrimônio da humanidade. O Brasil é membro da ONU e suas resoluções embora precisem ser homologadas, são comumente citadas nas jurisprudências como fontes de direito.
Assim como monges budistas já comprovaram e descrevem a cada dia os benefÃcios da meditação, as máquinas, exames e testes não nos ensinam a meditar ou não nos mostram como é a experiência dos diversos nÃveis de consciência vivenciados pelo praticante.
Assim também, mesmo que os testes venham a comprovar as hipóteses de modulação de dor, hormonais, neuronais, o que seja, ainda assim, não vão nos ensinar como praticar acupuntura, ou qual a experiência do qi, ou a surpresa que fica o paciente ao ver que sua dor no punho pode ser muito bem tratada pelo tornozelo. Para isso, basta ver, sentir e perceber, mas as nossas inteligências múltiplas talvez um dia se some a inteligência do qi, a capacidade e competência para mover o sopro, que não estará nunca na tela de um monitor ou nas páginas dos “papers†que virão. A isso, chamamos espÃrito da transmissão da nossa arte.
Sintetizo de forma simples. Acupuntura ainda não é ciência, pois não é a ciência que orienta a sua terapêutica, sua prática e as expectativas  das milhares de pessoas no mundo inteiro que descobriram que podem ter também economia buscando uma terapia simples e efetiva como a acupuntura, deixando para trás as indústrias farmacêuticas e seus revendedores. Talvez um dia, ela possa ser cientÃfica, mas aà não precisaremos de acupunturistas, teremos roupas, como escreveu anos atrás o companheiro Ephraim no fórum, que irão automaticamente regular os meridianos do corpo. AÃ, talvez possamos viver mais de 120 anos e teremos tempo de aprender tudo que deixamos para trás em nome da ciência.
Mário Fialho
Acupunturista, Pratica e Ensina acupuntura na www.multiversidade.com
Você pode ler outros de seus artigos em seu www.blog.mariofialho.com
Referências
Filme: O violino vermelho – ilustra o impacto da revolução cultural
Ephrain in Comunidade do Orkut: Â Discutindo Acupuntura
Um sábio não tem ideas – François Jullien
Martin Heidegger – A era da técnica
SOUZA, Eduardo Frederico Alexander Amaral de; LUZ, Madel Therezinha. Análise crÃtica das diretrizes de pesquisa em medicina Chinesa. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro,v.18, n.1, jan.-mar. 2011, p.155-174.
Notas:
(1) Claro que existem comprovações cientÃficas para a acupuntura mas ela não orienta a prática, porque a ciência busca um mÃnimo possÃvel. Não é baseado numa publicação cientÃfica que um praticante elege seus pontos, ele continua fazendo, e por isso acupuntura é uma arte e tradição que decorre da experiência clÃnica do ensinamento dos mestres.
(2) Nos referimos aqui a ciência no sentido da metodologia aplicada para testes e verificações de resultados tÃpicos da farmacologia e da biomedicina como testes clÃnicos controlados e laboratoriais que pela sua natureza de “controle†nos dá uma visão muito estreita da realidade múltipla da clÃnica em acupuntura.