Um pássaro a mais no céu – caminhos da terapia

gaiola

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Começo esse relato que talvez se some a outros tantos relatos sobre terapia com um dedicado ao fim da terapia.

Terapia, o processo de acompanhar numa tentativa insistente de se manter ao mesmo tempo atento e desperto, lúcido e envolvido, paciente e cuidadoso para com o florescer de um outro ser humano.

Carl Roger, um mestre da dimensão do encontro, certa vez, ao começar uma demonstração do seu processo terapêutico, se voltou aos que o assistiam e disse: Eu não sou perfeito, não sei tudo, não tenho todas as respostas mas sou um ser humano, e assim, posso compreender tudo que esse outro me traz, e por isso, sou bastante.

O que nos convoca na clínica é nos mantermos fiel a nossa humanidade. Daí toda uma terapia humanista, que hoje anda fora de moda, mas que fincou raízes firmes em muitas abordagens praticadas hoje. Somos seres humanos, nascidos para o encontro, nascidos desse espaço da relação, entre eu e o outro. Conjugamos verbos e julgamos sujeitos, nos sujeitamos, nos convertamos objetos, pretéritos, futuros e raramente PRESENTES. Mas, apesar de nossas precárias expressões gramaticais, existe o silêncio, e neste silêncio emerge muito sentido.

Sou um bom terapeuta quando me permito abertura e silêncio. Quando entro para um atendimento, como foi esse último, depois de uma conversa apressada ao celular, sinto que preciso de um tempo, para chegar ao que chamarei aqui de “estado da clínica”. Talvez eu escreva aqui algum texto sobre isso um dia.

Hoje, um companheiro evolutivo (o nome que peguei emprestado do Roberto Crema que me convocou a me tornar terapeuta) me trouxe por escrito os relatos de umas visões que teve na nossa última sessão. Era um belo relato bem escrito e sintetizava sua experiência clínica. Todos os elementos das suas escolhas existenciais mais profundas estavam ali. No momento percebi como estavam bem escolhidas e como estabeleciam, o aspécto masculino da imagem e feminino uma dialética simbólica de complementação e de integração.

Em seguida veio um sonho. Um sonho com uma chave dentro de uma gaiola aberta. A imagem profunda, tipicamente onírica, cheia de símbolos que retornei a ele convocando uma interpretação e lhe convidei a reclinar-se para explorar um pouco as emergências inconsciêntes.

O que retornou foi o primeiro tema que lhe veio quando começamos a terapia, uma experiência da infância, que ameaçou novamente por sua intensidade – mas, diferente da primeira vez que emergiu no espaço clínico – desta vez, foi evocada e integrada, parecia ter perdido sua força. Me tocou essa repetição da primeira imagem, nessa que foi, senão o fim da terapia, um retorno ao princípio que muitas vezes é também um fim, um fechamento de uma gestalt na bela linguagem de Fritz Perls.

Se seguiram alguns relatos e ao final eu escutei. Eu estou me sentindo bem, havia uma falta de engajamento, já lhe tinha perguntado, por que proseguir na terapia e a resposta surgira mais como uma aposta, talvez porque se tinhamos avançado até ali, por que não prosseguir. Mas, tal como um jardineiro, o terapeuta não sabe o tempo de cada florada, pode cuidar do solo, preparar um terreno fétil, mas não pode exigir que todos dêem frutos ao mesmo tempo. O tempo pertence ao paciente, sempre!

Ele me perguntou ao final da sessão, se deveria vir de quinzenalmente e eu feliz concordei prontamente.

Porém, durante todo seu processo, enquanto ele fazia seus relatos e esperava em silêncio o efeito das agulhas de acupuntura que utilizo após as sessões de terapia a imagem da gaiola aberta com uma chave dentro me intrigaram.

Mas ele mesmo me deu a pista. Disse que se lembrou da história que contara na sessão anterior.

A história é a de um Rei, que recebeu uma triste notícia, uma professia de que um grande mal iria cair sobre seu reino e sobre sua vida. Ele logo se apressou em se proteger, construiu uma enorme fortaleza. Fortificou as paredes, colocou guardas em toda parte. Até que desconfiado dos guardas e de sua segurança, expulsou a todos e fechou as portas guardando a chave no bolso.

A moral da história é que o Rei, para sair da sua condição existencial de prisão, precisa lembrar que a chave está no seu próprio bolso.

A síntese veio então nesse sonho, da chave que está dentro da gaiola. Até aí, tudo bem, estranho, mas afinal, porque um pássaro livre levaria consigo a chave de uma gaiola?

Assim, essa síntese, me convoca não apenas a esparçar os atendimentos, mas dar alta ao paciente. Alta no sentido da altitude alcançada, da síntese cheia de sincronicidades, pois num dos relatos anteriores, ao final ele via uma pipa no céu, esse mesmo símbolo de liberdade.

A terapia é o processo de abrir nossas gaiolas com as chaves que estão lá dentro mesmo. O proceso de nos fazer soltar nossas pipas, sem medo, experimentar o céu, o vôo a liberdade e se sentir seguro e confiante para seguir viagem sozinho.

Claro que a viagem é infinita e podemos ir até a iluminação ou a realização e atualização do nosso potencial, é o caminho de todos, mais cedo ou mais tarde, nos ensina a tradição budista, nascemos para a beatitude bem-aventurada.

Mas para nós, terapeutas, nossos companheiros evolutivos escolhem sempre até aonde querem a nossa companhia, porque o final da terapia é como um princípio, um passo para a jornada do viver, superando o sofrimento e se abrindo para voar para fora das nossas gaiolas existenciais.

About The Author

Mario Fialho

Mário Fialho é pai do Miguel Luz, professor na multiversidade, clínica e escola em Niterói. Vive dedicado a escrever, ensinar e a cuidar de tudo que é bom, belo e verdadeiro com simplicidade. E agradece a sua visita.